quinta-feira, março 29, 2007

DOS ARQUIVOS DO TRADUÇÃO SIMULTÂNEA, 4 : O REGRESSO
1. Gosto de regressar. As partidas pouco me dizem. Sim, há a curiosidade do que se irá encontrar, os tropeções do acaso dos afectos e dos lugares. Mas tudo se desvanece depressa, porque o instante mata o instante seguinte; a partir de certa altura, por perversão, atavismo nacional ou nostalgia literária, é o regresso que me apetece. Agrada-me ser feito da memória que tenho, e é no regresso que ela cintila, porque assume a forma superior da saudade, perfeição absoluta limada das arestas efémeras dos dias. Voltar ao que conheço, ao que amo, é das experiências que mais acarinho na vida. Não é por acaso que me emociono sempre que oiço estes versos do Volver, que nem por isso é o meu tango preferido:

Sentir... que es un soplo la vida,
que veinte años no es nada,
que febril la mirada, errante en las sombras,
te busca y te nombra.

É esta procura do que se ama, independente do que se viu, do que passámos ou mesmo por quem passámos que para mim dá mais sentido à vida. Outro exemplo artistico desta minha filiação é o filme O Homem Tranquilo, de John Ford, onde um homem traz o seu passado para um lugar que não conhece mas que sempre conheceu ? e lentamente se integra nesse que é o mais belo regresso filmado (para além de outras motivações, mas isso é outra história).

2. Assim na vida, assim nos amores, assim na amizade. Um amigo que regressa por improváveis circunstâncias aos nossos dias e nós aos dele ? como, por felicidade, me tem acontecido várias vezes ? não tem nada que se lhe compare. Talvez o estar apaixonado, dirão. Mas apaixonar-se é uma partida, não é um regresso. Quando se volta, já há pouco a perder e não é necessária a coragem que se tem de ter sempre quando se parte. E depois há um mistério único, que confere a tudo a primeira vez: cada sorriso o primeiro, cada rua a primeira, cada palavra a primeira. Até à próxima partida, até ao próximo regresso.

(publicado em Setembro de 2003)

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