I sing
what was lost
And
dread what was won
W.B.Yeats
Por um brevíssimo instante, contrariar aquilo em que
acredito e a minha natureza: só por isso olhar para trás. Ver as pegadas que
marcaram o ano que passou, perceber sem nostalgia as horas boas e más, os
caminhos que se perderam, o pouco que se ganhou. Fazer um álbum de recortes
precário e biodegradável, só para agradar o espírito da quadra, feito de
balanços e fins de ciclos fictícios mas em que queremos acreditar. Deixar de
lado a certeza cínica de que o tempo é a mais nefasta criação humana e, já
refugiado no abrigo do instante-agora, poder abusar dos sumários dos
dias em que combatemos ou gozamos. E perceber: este ano foi igual a todos os
outros. Choro, risos, desejos, frustrações, desilusões, dificuldades e até
oásis de uma perigosa felicidade.
Dirão: sobretudo dificuldades. Sim, sim. Muitas e de vários
géneros, incluindo algumas que poderiam ter sido evitadas ou abreviadas. Outras
que permanecem e são comuns a tantos, como a ausência de trabalho e dinheiro.
Tempos dificeis e sempre inesperados. Mas não é isso o que acontece a quem tem
o desplante de estar vivo? É essa teimosia militante que atravessa os dias,
sugando tudo o que encontra pelo caminho e juntando argumentos e forças para
discutir a injustiça inevitável que é a morte.
Mesmo assim, preferia ter abdicado das filosofias estóicas e
ter tido uma vidinha mais descansada. Não aconteceu. Pelo contrário, muitas
vezes fui engolido pelo pior de mim, o que pareceu reforçar de maneira sentida
e inexpugnável a minha baixa consideração pela natureza humana, a que por
tragédia e sorte pertenço.
Mas depois: no meio do escuro, das dúvidas, do cepticismo
seguro, voltar a embater naquilo que nos esforçámos por negar. Dito de outra
maneira: sem aviso nem perdão ser incluído nos milagres que persistem em ser
reais. Essa a maçada: o mais incrível dos milagres é o facto de existirem, como
diria o Padre Brown de Chesterton. E desafiando toda a suave misantropia que
adoptei como trincheira, eis que a amizade invadiu e conquistou todas as
cidadelas que erigi à custa da tristeza.
Uma invasão doce, inesperada, quotidiana. Amigos novos, que
proclamámos nunca mais fazer, riem-se destes preconceitos balofos e atacam a
alma e o coração, sem apelo nem agravo. Nem sequer há cerco: há uma marcha
sorridente, um apoio incondicional quando caímos feridos de descrença ou
melancolia.
Não estou nem nunca estarei preparado para isto. Há muito
que encontrava santuário apenas na antiguidade das amizades, que nunca me
desiludiram. Mas ser receptor destes milagres afectivos mais uma vez me deixou
desnorteado. A minha tímida e pobre resposta foi escrever uma frase para um
postal, e que declara «Não há amores como os que estão»,
manifesto inequívoco sobre a força e importância do hoje.
E é do hoje que vos escrevo, este hoje onde vivem agora
intrusos adoráveis que já não dispenso, que me ajudam a aceitar o mistério da
amizade consequente. Há uns anos citava isto de D. Francisco de Portugal:«
Digamos porque não se chama ao amor amizade. Entre as duas coisas há esta
diferença: o amor é uma paixão que tem mais de desejo que de prazer; e a
amizade é uma afeição reverente ou um amor envergonhado, que tem mais de prazer
que de desejo. O amigo pretende para o que sempre ama, e o amante para o que
pode deixar de amar. Um cuida de si, outro descuida-se de si».
Hoje, hoje mesmo, confirmo o que citei e tenho como única
ambição conseguir conservar por perto estes anjos improváveis que insistem numa
dádiva que já me é irreversível.
Bom ano. Afinal.