O que nos dão as canções, ou mais importante – o que é que
nós lhes damos? Tudo o que temos, o que tivemos, o que queremos ter. Nos casos
mais radicais, o que queríamos ser. Algumas canções entregam-nos uma ontologia
utópica de nós próprios, que só por sabê-las, cantá-las ou dançá-las,
acreditamos que é verdade o que nós pensamos que somos. Pessoalmente sinto
tanto essa necessidade que descobri no fundo de mim uma vocação para letrista
que me satisfaz mais a mim do que a quem ouve ou canta o que escrevo.
Blue Monday, dos New Order, é uma dessas canções que sempre me devolvem o que gostaria de ser e algum do tempo em que o tentei. Não é uma questão de nostalgia: danço-a hoje como a dançava quando foi lançada, em 1983 – com a diferença de que tenho a profunda alegria de não estar em 1983. Mas é fácil saborear aquela batida irresistível, a letra triste e resignada a contrastar com a aparente contradição da vontade de dançar, símbolo do caminho musical que a banda queria tomar.
Depois, o mito confundido connosco: a tristeza assumida como
uma das belas-artes, o imaginar a banda recolhida no estúdio em silêncio e em quase ascese.
Felizmente, existe sempre alguém que nos prova que é
mentira. Este pequeno documentário sobre o making of da canção choca os fieis
como eu: então os rapazes andavam em noitadas nos clubes de Manhattan ? Inspiraram-se em Sylvester? A
tão inconfundível batida está presente numa canção anterior da Donna Summer? O
Bernard Sumner diz que «não é uma canção, é uma máquina que faz dançar»? Mas,
mas...O que aconteceu ao meu mundinho lírico e vivido das gabardinas e olhos no
chão, da melancolia de papel que vestia sempre que dançava isto?
Este documentário é maravilhoso e perigoso. Tal como quando nos é revelado um truque de ilusionismo, fica sempre um levíssimo travo de desapontamento. Mas a magia fica intacta, senão mesmo reforçada. O que aconteceu, aconteceu e foi uma sorte e lindo para quem lá esteve ou abriu as portas da vida ao que estava a acontecer. E depois, há esta frase do genial designer gráfico Peter Saville que tudo define:«Ninguém estava ali para fazer dinheiro. Estávamos para fazer o que queríamos». Não vejo maior privilégio.
[para ver o documentário: http://www.svtplay.se/video/1681962/del-2-av-6-engelsk-text-english-subtitles ]