E basta essa assunção para tudo ser mais fácil. a vida, a morte, o tempo. Queremos - quero - falar com alguém. Foram duros estes dias, estão a sê-lo. A arrogância cega cansa-me e a tendência dos tempos para mais certezas e menos dúvidas repugna-me. E onde se lê 'tempos' leia-se pessoas.
Nada sabemos, nós os que ainda vivemos. Apenas podemos esperar o inesperado, como certifica Clarice. Apalpar às cegas as horas e o que nos é entregue sem mesmo assim termos a certeza de que iremos sobreviver. Neste périplo de quase 49 anos muito me foi oferecido; e o melhor, o que mais agradeço: os afectos e a dúvida. Ambos seguem uma lógica darwinista - sobrevivem os mais fortes. E são eles que me levam, as dúvidas e os afectos. É o que perdura e que atravessou o tempo que me serve de precária bússola, reassegurando-me do que sou e sobretudo do que não quero ser nem conhecer.
Quarenta e nove anos, mas de vida mais do que isso nos últimos dois calendários gregorianos. Tantos erros como deslumbres, tantas memórias como pesadelos - e tudo para guardar, preciosamente, numa caixa vítrea da memória, para não esquecer, para consultar. Mas nunca, nunca para viver. «Regret, there's always regret», dizia o grande poeta lúcido. Mas a separação do que ficou é o que mais nos ajuda à união do que está hoje e, com sorte, do que há-de vir.
Santo Agostinho escreveu que «o tempo vem do futuro, que ainda não existe, para o presente, que não tem existência, e some-se no passado, que deixou de existir». Envelhecer - ganhar vida - é perceber e regozijar nesta crença. O muito que fizémos permanece; o bom tem de ser mantido; o mau apenas lembrado e consultado. Tudo o resto - o olhar de espelho de feira dos outros que apenas conseguem ver o seu pobre reflexo; aqueles que louvam a obra mas que não se interessam pela vida; os outros que se auto-condenam à comiseração por excesso de vontades compradas em hipermercado: poder sobrevoar isso ao mesmo tempo que celebro as alegrias do aqui e agora legitimados por aquilo que fui sendo e ratificado pelos que verdadeiramente me amam e amo - eis o primeiro e derradeiro motivo para que as velas que irei apagar no próximo dia 9 de Outubro sejam mais do que desejos: sejam conquistas e gratidão.