Nietzsche, confissões e televisões
Este acordar da Charlotte trouxe-me memórias pessoais interessantes e inúteis, vontade de dizer coisas e sobretudo um belíssimo motivo para procrastinar gloriosamente.
Para começar, fico sempre com inveja de quem descobre autores numa altura supostamente «tardia», apenas porque normalmente tem-se muito maior gozo com isso. No caso da Carla, Nietzsche, que eu «descobri» aos 16 anos. Ler o Para Além Do Bem E Do Mal com as hormonas em modo milk shake é natural. O filósofo tem um estilo galvanizante, épico e que faz levantar das cadeiras e empunhar bandeiras. Como a Carla bem diz, oscila sem meias-tintas entre a demência e a pura genialidade. Mas isso só fui descobrir muitos anos mais tarde - muito depois de ter gasto toda a minha mesada e poupanças no pavilhão da Guimarães Editores,da Feira do Livro de 1980, onde comprei todos os livros traduzidos. Levei várias vezes o Also Sprach Zaratustra para a praia, onde lia as passagens mais misóginas às minhas amigas, apenas para causar indignação e o contacto físico que se seguia. Havia, nesse outro tempo, uma mistura de força, de triunfo da vontade que se misturava com ídolos e atitudes: Nietzsche, Morrison, Curtis, Baudelaire, Oscar Wilde, o dandismo, Tristan Tzara e Dada. Miraculosamente, tudo fazia sentido, sendo os pressupostos nietzscheanos o ponto comum para estes homens revoltados (o Camus veio explicar tudo a seguir).
Nietzsche, na sua errática obra, é um filósofo quase pop, abandonado a si próprio e muitas vezes mais romântico do que Byron. Com o ainda ligeiro peso dos meus anos, aprendi a separar o que dele prevalece (que é muitíssimo) e a admirar com outros olhos as fontes onde foi beber (Schopenhauer, por exemplo). Mas na altura significava revolta. O meu professor de Filosofia do 10º ano - que sabiamente nos obrigava a levantar sempre que entrava na sala, coisa então já pouco comum mesmo no Liceu Camões - odiava Nietzsche. Era um aristotélico inflexivel, que nos dava as notas em latim (ascendere superius se subiamos a nota, manterius auto-explicativo e um olhar gélido para quem tinha negativa) e desdenhava a ausência de sistema filosófico em Nietzsche. Para um adolescente, isto era uma tentação demasiado forte.
Voltei a pegar agora n'A Origem da Tragédia, como preâmbulo ao Crepúsculo dos Ídolos. O sangue voltou a correr como nessas horas de militância decadentista púbere. Mas com a vantagem de já carregar uma vida e poder reclinar-me num prazer solitário e desafiador.
Depois, há Deadwood. Reconheço desde já a adição e que preciso de ajuda profissional. Estão-se-me a acabar os DVD's. Deadwood e Nietzsche? Claro: um local em que a moral existe como resultado das circunstâncias, em que se assiste a cada minuto que passa de um novo imperativo ético eminentemente descartável é território nietzscheano por excelência. E de Shakespeare, querida Carla: é verdade que o personagem de Al Swearengen é o Super-Homem amoral (e brilhante). Mas confesso que é o shakespereano E.B Farnum que me fascina. Um miserável pau mandado para o mal, mas consciente disso mesmo, com um vocabulário brilhante e o único com direito a solilóquio («Swearengen is the cue...I'm the billiard ball»). Tem também algumas das melhores deixas da série («A gutter-mouth and an opium-stupored widow: a conversation for the ages!»).Enfim, fiquemos para já por aqui: há outro episódio para ver.