THE POLAR EXPRESS (post longo, fora d'horas, a despropósito mas, como dizer, sincero) Por mais que nos habituemos, por mais que sobrevivamos desta maneira, no nosso dia-a-dia, por mais que tentemos escapar, como eu: há uma altura, um segundo revelador em que somos confrontados com as palavras.
Por favor, isto, por uma vez, não é leviano. Nietzche dizia dos amigos antigos- de quem se perde contacto mas que permanecem com uma imagem de nós ? que nos perseguem como fantasmas. Fantasmas daquilo que fomos para eles, daquilo que os assombra e em que acreditam ? mesmo que não seja verdade.
O mesmo com as palavras.O que dizemos, o que escrevemos agarra-se a nós pela única e injusta razão de que não temos alternativa. Em certa medida (ia dizer em todas, mas não quero ofender ninguém) somos o que dizemos e escrevemos. Pouco mais nos é permitido. E é tão pouco, e é tão bom.
Confesso que vivo obcecado com esta limitação.A história de "uma imagem vale mil palavras" é para mim uma falácia, porque simplesmente para ser válida tem de pelo menos valer uma. De que me vale uma brilhante fotografia de Walker Evans ou um quadro de Vermeer se eu não consigo traduzir o que me fazem ? A bem dizer, e aqui entre nós: nada. O pior é o que se segue: conseguimos traduzir o que nos faz ? A resposta honesta e desassombrada é - não. O que temos à disposição é pouco e nunca chegará. A boa notícia é que o prazer estético ? literário, visual, quotidiano ? é um prazer inútil e solitário e não tem que ser partilhado. A partir do momento que o é, deixa de o ser; ou seja, nunca corresponde ao que foi sentido. A história de " o poeta é um fingidor" aplica-se a todas as artes, sem excepção.
Em termos de palavra ? que pessoalmente é o que me interessa ? esta fractura foi notada primeiro pelo movimento anti-romântico. Quando Pound se quer livrar do "emotional slithe" (o lixo emocional), pede uma distanciação total da farsa do poeta confundido com os seus sentimentos. A poesia cerebral de Eliot ?com o Wasteland não por acaso editado por Pound ? é o apogeu dessa maneira de pensar. As palavras estão no seu lugar: certas, musicais, distantes ? mas reveladoras de quem as escreveu.
2.Tristan Tzara, Hans Arper, Marcel Duchamp e outros comparsas perceberam isso. Dada, mais do que uma reacção anti-arte (e das poucas verdadeiras rupturas radicais no século XX) é um jogo com o valor do que dizemos. A poesia fonética ? em que a palavra é reduzida a um som sem outro valor do que esse ? é uma tentativa desesperada e de salão de arranjar uma maneira de dizer o que se sente. A aldrabice oportunista dos surrealistas ? que, a partir de André Breton, deram método e institucionazaram o que já existia sem dar crédito a ninguém ? é a mesma tentativa mas com fundamentos filosóficos e marketing que Dada não tinha nem queria ter. Os dogmas surrealistas mataram o diletantismo do Cabaret Voltaire. E com isso o movimento que não o era, mas que provavelmente esteve mais perto da verdadeira intenção do criador em relação ao que cdriava desde as grutas de Altamira.
3. De regresso ao que interessa. Não foi por acaso que Magritte pintou a mais maquiavélica das armadilhas ? o quadro a que se chama "Ceci n?est pas ume pipe". Apesar de vermos um cachimbo inequivocamente à nossa frente, é para as palavras que nos dirigimos. Pior: é nelas que confiamos e sem hesitar nos pomos ao lado delas. Sabemos que o que vemos é um cachimbo; mas se está escrito que não é?
É esta extraordinária limitação e possibilidade simultânea que me faz estar deste lado. Ou seja: respeito e preciso de todos os modos de expressão que me possam oferecer.Gosto de cinema, pintura, teatro, o que quiserem. Mas sei que, mais tarde ou mais cedo, tudo cairá neste sucedâneo da Torre de Babel. Seja a reacção a uma obra-prima ou apenas a triste possibilidade de se dizer "amo-te".
É por isso que gosto e admiro quem supere este duríssimo desafio: dizer ou escrever, com o que todos conhecem, de maneira diferente e convincente. As palavras são o único território em que tudo foi explorado. Não há ambições a nada de novo, a não ser rearranjar o que há muito foi feito de modo a parecer sempre novidade. E isso é possível, e isso é que é lindo.
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