É provável que hoje escreva para
sacudir a morte, esse triste recado que sempre nos chega quando se nos morre
alguém próximo. Mas é preciso. Preciso.
Há coisas que alegram a vida de
quem fica vivo. No caso do Sidónio, tantas memórias, tantos pormenores escoados
pelos dias e que agora se erguem, trocistas, consoladores. É a eles quer me
agarro, náufrago de mim mesmo. Essas cumplicidades quotidianas que tantas vezes
subestimamos até ao dia em que desaparecem, sem remédio ou salvação.
O mesmo cumprimento, trocadilho mal
amanhado mas feliz, ao vê-lo chegar invulgarmente antes da hora aos
compromissos que tínhamos nas residências artísticas do Povo Lisboa: «Hoje
chegaste Sidónio. É melhor do que chegar Tardónio». E isto vezes sem conta, e
sempre ríamos porque sabíamos que tudo se iria repetir e era bom.
Os pormenores, as minhas tábuas que
mal flutuam: as conversas displicentes e abandonadas ao copo de vinho, o doce
sotaque alentejano. As avaliações discretas e românticas de dois apreciadores
confessos dos encantos femininos. As suas mansas picardias, ao levar-me a falar
das minhas estrondosas derrotas amorosas ou parcas conquistas. As conversas
quando me levava a casa depois do fado, no “Sidóniomobile”, um Smart marginal
que desafiava por vezes as regras de circulação em Lisboa e que transportava
três passageiros amigos: eu, o condutor e a sua guitarra portuguesa, adormecida
no pequeno porta-bagagens.
O olhar cansado de muita vida. O
olhar brilhante quando certa vez apareceu no Povo, inesperadamente, um mestre
do cavaquinho do choro, companheiro de Pixinguinha e já octogenário. Foi amor à
primeira vista para o Sidónio: “O velho toca como o caraças, o velho toca como
o caraças”. E lá deixou tudo o que tinha a fazer para ouvir histórias e
aprender com o “velho”. O Sidónio respeitava os Mestres, procurava sempre
superar-se através do que lhe podiam ensinar. E a isso chama-se nobreza.
Pequenas vitórias, egoístas. O dia
em que chego ao estúdio, invariavelmente atrasado e com tudo à minha espera
para gravar. Na mão, um papel amarrotado e gatafunhado com a letra do que viria
a ser o Inventário da Melancolia, cantado pela Nádia Leirião, com uma extraordinária música dele
(e que podem ouvir aqui). A forma como entrou para o “aquário” no estúdio,
esquecendo-se que os microfones estavam abertos e confidenciando ao João
Penedo, sem perceber que eu o ouvia: «O sacana escreve bem». A gargalhada
geral, a minha secreta vaidade.
Estou agora mesmo a ouvir uma
música que o Sidónio me pediu para preencher com palavras. Não o conseguirei
fazer agora. Mas fá-lo-ei. Por enquanto o que estas notas me trazem é uma
indignação triste: Foste Sidónio, meu amigo, foste-me Sidónio demais.